

A alegre capital da Bahia é amplamente reconhecida como a cidade com a maior população negra fora do continente africano, um título que reflete sua rica herança cultural e a alta proporção de afrodescendentes em sua população. Diversos fatores históricos e sociais ajudam a entender essa singularidade, que faz de Salvador um símbolo de resistência e preservação da cultura africana na diáspora.
O papel histórico de Salvador na diáspora africana
Durante o período colonial, o Brasil foi o maior destino de africanos escravizados trazidos para as Américas, e Salvador desempenhou um papel central nesse processo. Fundada em 29 de março de 1549 pelos colonizadores portugueses, Salvador se tornou uma importante porta de entrada para milhões de africanos, sendo um dos pontos mais movimentados da época. Esse influxo massivo de pessoas escravizadas moldou a composição demográfica e cultural da região, deixando marcas profundas que ainda são evidentes nos dias atuais.
De acordo com o Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Salvador é a capital brasileira com a maior proporção de pessoas que se autodeclaram pretas. Os números mostram que 34,1% dos habitantes se identificam como pretos e 49,1% como pardos, totalizando 83,2% da população que se considera negra. Essa composição demográfica fortalece o legado afrodescendente e a identidade cultural da cidade.
A influência africana na cultura de Salvador
A influência africana em Salvador vai além do aspecto histórico e é vivenciada diariamente nas práticas culturais e celebrações da cidade. Tradições como o candomblé, a capoeira, a musicalidade (com destaque para o samba e o axé), festas religiosas e a gastronomia, rica em temperos fortes e marcantes, refletem diretamente a preservação da cultura africana. Essas manifestações são mais do que meros símbolos; elas representam o coração da identidade soteropolitana.
Em conversa com o professor de história e especialista em história do Brasil, Cleiton Mesquita, exploramos as razões e desafios da população negra de Salvador na preservação de sua cultura e identidade.
Questionado sobre essa distinção histórica, o professor Mesquita explicou o papel de Salvador na recepção de africanos durante o período colonial.
“O tráfico transatlântico de escravizados entre a África e a Bahia foi um dos mais intensos e duradouros do mundo. Salvador, por séculos, foi a principal porta de entrada de africanos escravizados no Brasil, moldando profundamente a história, cultura e sociedade baiana”, afirmou.
Entre os séculos XVI e XIX, pessoas originárias de várias regiões africanas foram trazidas à força, vindas de áreas como o Golfo de Benin, Congo, Angola e Costa da Guiné, o que contribuiu para a formação de uma identidade cultural afr
odescendente que se consolidou ao longo dos séculos.
Sobre os desafios enfrentados após a abolição, Mesquita destacou a palavra “resistência” como chave para entender a preservação da cultura afro-brasileira.
“A existência da cultura, identidade e de todo tipo de tradição africana no Brasil se deve, fundamentalmente, ao ato de resistir”, afirmou.
Para ele, a continuidade da herança africana foi possível graças ao enfrentamento das tentativas de genocídio, ao racismo estrutural e às violências políticas que atravessam raça e gênero.
Indagado sobre a importância das religiões de matriz africana na preservação cultural, Mesquita ressaltou que o candomblé e a umbanda são um testemunho vivo de resistência e adaptação.
“Essas práticas enfrentaram diversas tentativas de repressão e estigmatização ao longo dos séculos, mas conseguiram se manter e desenvolver, moldando profundamente a identidade cultural da cidade.”
Segundo Mesquita, as religiões de matriz africana foram o epicentro da resistência e preservação da cultura, e não houve instituição social capaz de preservar a essência da cultura africana na Bahia com maior eficácia do que a religião.
A importância das mulheres negras na construção da sociedade baiana
Refletindo sobre o papel das mulheres negras, Mesquita destacou a relevância de figuras como Maria Felipa de Oliveira.
“Maria Felipa de Oliveira, sobretudo, é uma figura central dessa representatividade, que visa até hoje combater o apagamento histórico, a violência política de gênero, o machismo e toda a estrutura branca patriarcal que promove e promove silenciamentos.”
Em um cenário adverso, as mulheres negras também desempenharam um papel estratégico por meio do empreendedorismo.
“O empreendedorismo negro feminino teve participação estratégica. A venda de quitutes nas ruas era muito mais do que um meio de subsistência para as mulheres negras; era uma estratégia de resistência que permitiu a construção de comunidades livres e autossuficientes.”
Ele enfatizou que, ao investir os seus lucros nas compras de alforrias, essas mulheres não apenas transformavam vidas individuais, mas também contribuíam para a formação de espaços de resistência coletiva contra o sistema escravocrata.
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