

A maternidade é, para muitas mulheres, um momento de felicidade e realização de um sonho. Cada fase do bebê é um motivo de alegria e comemoração. Foi assim a gravidez de Rosângela dos Santos, mãe do Thiago dos Santos, que hoje tem seis anos. Ela não conseguiu estar presente e criar o filho. Rosângela foi vítima de violência obstétrica durante o parto e morreu dias após parir.
“Ela estava muito feliz com a gravidez. Ela era uma pessoa muito alegre, alto astral, fazia piada com tudo, era impossível não rir com ela. Amava curtir festas, shows, viagens e conhecer pessoas”, conta Laliane Luciano, 25, prima da vítima, à BNews Premium.
“Seria o segundo filho dela, o primeiro na época tinha 14 anos. E ela estava muito animada, queria muito que fosse uma menina e que fosse parecida comigo, já tinha planejado nomes, padrinhos e a rotina da criança”, recorda.
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“Ela não apresentava problemas de saúde, mas começou a sentir dores intensas ao entrar em trabalho de parto. Procurou uma maternidade em Valença, mas, para sua surpresa, no plantão em que chegou, não havia obstetra nem profissionais qualificados para realizar o parto. O procedimento foi feito por estagiários. Quinze dias depois, ainda sentindo dores insuportáveis, voltou ao médico. Foi encaminhada para a regional de Santo Antônio de Jesus, onde descobriram a causa de seu sofrimento: uma infecção severa que já havia comprometido outros órgãos, porque esqueceram uma gaze dentro dela”, revela Lailane.
Rosângela chegou a fazer uma cirurgia de urgência, mas permaneceu internada e apresentou complicações. O quadro se agravou rapidamente.
No mesmo dia, ela encaminhada para realizar uma cirurgia de urgência, mas mesmo assim ela permaneceu internada por dias à espera de um cirurgião e anestesista. Quando finalmente conseguiu ser operada, passou cinco horas na sala cirúrgica e foi transferida para a UTI. Da UTI, infelizmente, ela nunca mais voltou”, lamenta a familiar.
A baiana é uma das 52 mil mulheres, entre 10 e 49 anos, que morreram na Bahia durante o parto ou por complicações relacionadas à gravidez nos últimos dez anos. Dados do Ministério da Saúde obtidos pelo BNews Premium revelam que, entre 2015 e 2024, uma média de 5.608 mulheres perderam a vida por ano no estado dessa forma. Em 2021, durante a pandemia de Covid -19, foi registrado o período com maior número de ocorrências, com 6.336 casos registrados.

Ao longo dos dez anos, a faixa etária com maior mortalidade na Bahia foi a de 40 a 49 anos, totalizando 25.227 mortes. Já entre 30 a 39 anos, os dados indicam que ocorreram 13.788 mortes. Na faixa de 20 e 29 anos, o número de óbitos cai para 7.840, e na faixa de 10 a 19 anos, o total foi de 4.206.
Em 2024, na Bahia, os dados de óbitos revelam que a faixa etária com a maior mortalidade continua sendo a de 40-49 anos, com um total de 2.672 óbitos. Em seguida, na faixa de 30-39 anos, foram registrados 1.334 óbitos. Para os jovens de 20-29 anos, o total foi de 707 óbitos, enquanto na faixa de 10-19 anos, houve 359 mortes. Esses números destacam a gravidade da situação nas faixas etárias mais elevadas.
Conforme apontam os dados do Ministério da Saúde consultados pela BNews Premium, a Bahia é o terceiro estado do Brasil com maior número de mortes maternas registradas em 2024. Na região Nordeste, o estado lidera o ranking, com mais de 5 mil casos. Em seguida aparecem Pernambuco, com 3 mil vítimas, e Alagoas, com pouco mais de mil.
No total, a Bahia registrou 5.072 mortes maternas em 2024. A nível municipal, Salvador — a capital do estado — contabilizou 1.541 óbitos, o maior registro. Na região centro-leste, Feira de Santana teve 783 mortes. Na região sudoeste, Vitória da Conquista registrou 592 óbitos, enquanto Ilhéus, no sul, contabilizou 599 casos. Teixeira de Freitas, no extremo sul, teve 309 mortes, e Juazeiro, no norte da Bahia, registrou 413 óbitos. No oeste, Barreiras somou 303 mortes, e na região nordeste, Alagoinhas teve 289 óbitos. Na região centro-norte, Jacobina contabilizou 238 mortes. Além disso, as informações do ministério indicam uma macrorregião indefinida com cinco casos.
Em abril deste ano, um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), revelou que cerca de 300 mil mulheres morrem todos os anos em decorrência de complicações relacionadas à gravidez ou ao parto.
A morte da mãe pode ter um impacto significativo no desenvolvimento cognitivo do bebê. A criança precisará de uma rede de apoio robusta; caso contrário, pode enfrentar dificuldades de aprendizado e na formação de vínculos afetivos. O contexto social em que a família está inserida influencia diretamente a maneira como o luto é processado e os cuidados prestados ao bebê.”, alerta a psicologa Rosângela Pereira, especialista em saúde mental da mulher, à BNews Premium.
No caso da prima de Laliane, a família se dividiu para cuidar das crianças e lidar com a perda materna. “É um assunto muito delicado até hoje, é muito difícil… amamentação, cuidados, tudo isso foi divido entre a madrinha, meus avós, mas depois do falecimento deles [madrinha, avô,tio], minha avó ficou sobrecarregada…já criou 10 filhos e agora o neto pequeno. A sorte é que o mais velho já é de maior, tem a casa dele e ajuda. Porque foram muitas perdas para uma pessoa tão jovem”, lamenta ela.
A cor da dor
O levantamento dos últimos dez anos do Ministério da Saúde, revela que, dos 52 mil casos registrados na Bahia, 9 mil correspondem às mulheres negras cujas vidas foram interrompidas, contabilizando 17,31% dos óbitos. Em 2024, das 5 mil mortes maternas, 4 mil foram mulheres negras, sendo 80% dos casos. Os demais grupos registram 124 brancas, 22 indígenas e 13 amarelas.
A violência obstétrica nem sempre leva a vida das mulheres, mas deixa marcas dolorosas para a vida inteira, como ocorreu com Milena Lima, de 36 anos, momentos antes do nascimento do primeiro filho dela, Matheus Lima, de oito anos.
De acordo com a mãe, que é negra, quando as contrações do parto começaram, ela foi até o médico. Sem passar por uma análise adequada, o profissional a mandou caminhar o dia inteiro e, em seguida, a encaminhou para casa. Após retornar ao hospital, foram realizados inúmeros exames de toque, com a gestante ainda sofrendo agressão verbal.
“Quando retornei ao hospital por volta das 23h, fui internada e submetida a muitos exames de toque. E toda hora era exame de toque. Após um tempo, recusei continuar com esses exames. Na manhã seguinte, às 8h, minha bolsa estourou e esperei muito tempo sem ser chamada. Uma das enfermeiras falou pra mim, ‘agora ela tá sentindo dor, mas na hora de fazer o exame de toque, ela não sentia dor’, o que me machucou”, diz Milena.
“Decidi fazer uma queixa à assistente social e chamei meu esposo. Informei que a bolsa havia estourado às 8h e já eram 11h sem atendimento. A assistente reconheceu o erro e uma enfermeira passou a me acompanhar. Logo após a reclamação, fui chamada para a sala de cirurgia”, narra.
Milena recorda que, após horas, foi atendida pelo médico e, durante o procedimento, não tiveram o cuidado de verificar se a paciente estava anestesiada.
“Quando ele me cortou, senti a dor e gritei. Ele, de forma grosseira, perguntou se eu estava sentindo. Respondi que sim, e o enfermeiro, surpreso, pediu que eu balançasse o pé. Falei que quando meu esposo entrasse, contaria o que estava acontecendo. O médico então aplicou a anestesia, mas eu estava com muita falta de ar. Quando meu esposo chegou, tentei explicar a situação enquanto ele chorava de preocupação”, revela a mãe.
Após todo o procedimento, a criança nasceu, mas estava toda roxa. Todos ficaram abismados. Ele chorou, mas continuava completamente roxo. Depois, a pediatra me informou que, se passasse mais um tempo, ele poderia ter morrido por causa de negligência médica”, lamenta.
Segundo a psicologa ouvida pela BNews Premium, não é possível abordar a violência obstétrica sem considerar o racismo estrutural e seus impactos durante a gestação — momento que deveria ser de alegria –, podendo, infelizmente, levar até à depressão pós-parto.
“Considero que discutir a violência obstétrica é também abordar o racismo obstétrico, que, embora tenha suas particularidades, afeta todas as mulheres negras. Infelizmente, nenhuma mulher negra está livre de passar por essa experiência, devido ao racismo estrutural”, descreve Rosângela Pereira.
E adiciona: “Desde o pré-natal, elas enfrentam a minimização de suas dores, recebem menos informações, têm direitos negados e não recebem a assistência adequada. Além disso, muitas vezes não conseguem planejar o parto apropriadamente. Todos esses fatores podem resultar em um aumento das psicopatologias perinatais, como ansiedade, medo, vergonha e até casos de baby blues [depressão pós-parto]”, informa especialista.

Procurada pela BNews Premium, a Secretária de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) informou existem ações “estruturantes realizadas e em curso” para minimizar os dados no estado. O órgão destacou a redução do percentual em 20% na mortalidade materna entre 2021 e 2024.
“O lançamento do Programa Mãe Bahia, com investimento de R$ 826,8 milhões, focado em ampliar o acesso ao pré-natal qualificado, ao parto humanizado e ao acompanhamento pós-parto”, aponta.
A nota da Sesab também destacou a criação, ampliação e requalificação de 805 maternidades e unidades de atendimento em Valença, Serrinha, Amargosa e Juazeiro. A BNews Premium também questionou o Ministério da Saúde sobre as medidas de combate à violência obstetrícia, mas não obteve retorno.
Divulgação/Gov.BR