

Aprovado quase que a toque de caixa, o Projeto de Lei 25.851/202, que destina mais recursos do Fundo Especial de Compensação da Bahia (Fecom) para o Ministério Público da Bahia (MPBA), não foi precedido de consulta prévia às entidades cartorárias e tampouco teve apresentação de laudo atuarial que comprove a necessidade da medida. Os argumentos foram apresentados por entidades de classe em um ofício destinado ao governador Jerônimo Rodrigues, para que vete o texto. Com a sanção da lei, mais de 60% dos cartórios extrajudiciais da Bahia podem ser fechados.
Essa ausência de diálogo e embasamento técnico, segundo a Confederação Nacional de Notários e Registradores (CNR) e a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), viola diretamente os artigos 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e 48 da Constituição Baiana. As entidades alertam para o que consideram um “retrocesso social desastroso” e um “injustificável ataque aos direitos sociais” da população baiana.
O cerne da polêmica reside na proposta de redução do repasse obrigatório dos emolumentos ao Fecom, que cairia de 12,2% para 9%. Em contrapartida, o montante destinado ao Fundo de Modernização do Ministério Público Estadual seria triplicado, passando de 1% para 4%. Outros órgãos, como a Defensoria Pública, que também vive de suplementação orçamentária do governo, não foi beneficiado com a iniciativa, mantendo a mesma porcentagem no rateio dos recursos, de 1,28%.
Segundo o Fecom, o fundo já opera com um déficit mensal de R$ 714 mil. Com a nova medida, a projeção é que esse valor salte para assustadores R$ 3,371 milhões, levando o Fundo à extinção em apenas seis anos. As consequências são alarmantes: 461 serventias, o equivalente a 61,3% do total de cartórios baianos em 224 municípios, seriam diretamente afetadas, incluindo seis cartórios na capital que hoje dependem desses repasses mensais para operar.
A entidade afirma que a manutenção de seus recursos é vital para o financiamento da gratuidade de atos essenciais como registros de nascimento, casamento, óbito e a regularização fundiária de interesse social. Sem ele, milhares de famílias vulneráveis ficariam sem acesso à documentação básica, o que dificultaria o acesso a benefícios sociais, a matrícula escolar e a inserção formal no mercado de trabalho. Além disso, a regularização de imóveis de interesse social seria inviabilizada, comprometendo políticas públicas de habitação.
O Fecom apresentou ao governo um relatório de impacto financeiro destrinchando que mais de 60% dos cartórios baianos correm o risco iminente de fechar as portas. Isso forçaria a população de pequenos municípios a realizar deslocamentos onerosos para grandes centros, sobrecarregando os cartórios remanescentes e gerando filas e atrasos. A arrecadação estadual também seria impactada, já que emolumentos e o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) deixariam de ser recolhidos onde as serventias não estivessem operando.
O Fecom também custeia a compensação de serviços essenciais para a comunidade LGBT+, como alteração de nomes e gênero, e garante os direitos de quilombolas e povos originários em procedimentos como mudanças de nome e inclusão de etnia. De acordo com a entidade, a redução do fundo inviabilizaria a manutenção da renda mínima de cartórios deficitários, o quadro de funcionários necessário e a garantia desses serviços gratuitos e isentos, essenciais para as populações mais vulneráveis.
Dados preocupantes revelam que, dos 752 cartórios na Bahia, 305 estão vagos, a maioria em cidades pequenas e altamente dependentes da Renda Mínima do Fecom. Com a realização do próximo concurso público e a substituição de interinos por titulares, os custos aumentarão em aproximadamente 30%, tornando ainda mais crítica a situação do Fundo.
As entidades também levantam a inconstitucionalidade formal e material do Projeto de Lei. Além da ausência de consulta prévia e de laudo atuarial, a medida é acusada de desvio de finalidade. Ao retirar recursos essenciais para a universalização do registro civil e direcioná-los ao Ministério Público – órgão que já possui dotação orçamentária própria e vinculada à receita corrente líquida do Estado da Bahia –, cria-se uma apropriação indevida de taxas destinadas a um serviço público específico, o que afronta diretamente o artigo 167, IV, da Constituição Federal. O corte de 25% no Fecom em contraponto a um aumento de 300% para o Ministério Público é considerado “desarrazoado”, na medida em que sacrifica um serviço essencial em benefício de um órgão que não depende dessa verba para cumprir sua missão constitucional.
O estudo interno realizado pelas entidades cartoriais projeta que, em seis anos e sete meses, a Bahia terá cartórios apenas nas capitais e polos regionais, deixando comunidades rurais e bairros periféricos sem acesso aos serviços. As repercussões negativas atingiriam diretamente os direitos da criança e do adolescente, programas habitacionais, como o Minha Casa, Minha Vida, e promoveria insegurança jurídica em transações imobiliárias, sucessões e relações familiares.
As entidades signatárias do pedido ao governador reforçam que os cartórios da Bahia já operam no limite, com o maior percentual de repasse do Brasil (51,7% dos emolumentos pagos) destinados ao Estado. A redução proposta pelo PL representa uma diminuição de 25% na receita do Fecom, equivalente a uma queda de R$ 31,8 milhões anuais. Isso afetará a capacidade financeira do Fundo, tornando inviável o suporte aos cartórios deficitários e comprometendo o atendimento gratuito à população mais vulnerável.
Foto: Agência Brasil